sábado, 24 de agosto de 2019

O Diabinho da Garrafa (conto)

        
   Na década de 70, eu estava viajando pelo estado da Paraíba a trabalho, quando nosso caminhão teve problemas e tivemos de nos estacionar por uns dias em um lugarejo no interior chamado, na época, de Córrego de Areia. Não me alongarei quanto aos detalhes relativos aos motivos da viagem ou porquê o transporte quebrou, apesar de provavelmente ser da curiosidade do senhor leitor, o intuito é contar um relato sobrenatural, real, que aconteceu comigo e até hoje, tira meu sono. O que irei dizer aqui, posso garantir que é mais real que o fato de eu estar vivo. Sou ou pelo menos era, uma pessoa exacerbadamente cética, que deve ver para crer; quando digo que vi o que vi e ouvi o que ouvi, acredite.
Eu estava na casa dos 20 e poucos anos e, com aquela sede de viver que só os jovens têm, não estava satisfeito de ficar enfurnado na pensão de merda que alugamos, de forma que decidi explorar a pacata Córrego de Areia. O clima era quente e seco, o que não era incomum para a localização; pela tarde, decidi andar um pouco por lá, estava mais quente e seca do que as outras tardes que vivi em minha curta estadia. Durante minhas andanças, encontrei uma feira livre, relativamente grande para o pequeno núcleo populacional da cidade. Conversei um pouco com os moradores e feirantes, descobri que aquela feira, na verdade, era um ponto de encontro de vendedores itinerantes de diversas partes do estado, justamente pelo fato da pequena cidade estar no epicentro dos caminhos que levavam a maior parte dos locais importantes da região. Lá havia de tudo: de galinhas a filhotes de cães e gatos, de frutas à comidas indescritíveis, de bebidas alcoólicas a materiais esotéricos…
E foi em uma barraca de materiais esotéricos que me demorei um pouco mais, interessado, em particular, numa garrafa de cachaça, vazia, arrolhada, que parecia ter algum pequeno ser vivo dentro. Não era muito visível, parecia uma espécie de calango ou lagarto, talvez um rato; não conseguia ver bem pois se encontrava encolhido em um de seus cantos transparentes. No meio daquela gama de crânios de diversos animais, poções, dentes de alho e estátua de ídolos desconhecidos, a estranha vendedora se inclinou no balcão, perguntou se eu estava interessado no Familiá. Primeiramente, assustei-me com sua aparência, era uma mulher exageradamente feia: desdentada, pele muito castigada pelo sol e um dos olhos totalmente branco, provavelmente cega deste. Embasbacado e ao mesmo tempo curioso perguntei o que seria o Familiá, então sua reação deixou-me surpreso: apenas sorriu e segurou a garrafa com ambas as mãos, virando-a para mim, para o meu terror, revelando a forma da criatura, da qual eu nunca mais esqueci.
De dentro da garrafa, encolhido em um canto, levantou a cabeça para me olhar uma pequenina figura vagamente antropomórfica de cerca de quinze centímetros, pele preta, com raros e finos pelos espalhados pelo corpo, cauda de lagarto, pequenos chifres na cabeça. Quando ainda mais horrorizado, percebi que a fuça do animal era praticamente idêntica a de um homem, fiquei paralisado. Parecendo perceber meu medo, o pequeno ser pulou na parede da garrafa, como se estivesse avançando em minha direção. A criatura que eu não sabia o nome - ou ousava nomear, fixou suas mãos, de supetão, no vidro e me fazendo cambalear para trás, caindo em cima de alguns balaios de palha. Juro que, por uma fração de segundos, pude ter a impressão que o monstrinho ria de mim.
A velha gargalhou, acariciou a garrafa, proferiu, com aquela voz rouca e assustadora, palavras que eu nunca mais esqueci:
-Suncê num é daqui né, fío, isso aqui é um Familiá, um diabinho da garrafa. Por enquanto ainda tá piqueno, mas em pouco tempo vai ficá adulto e trazer todas as riqueza que o dono quisé. Dá muito trabaio fazer, sim sinhô, mas se suncê quiser ti vendo ele. Num vai barato, claro, mas não tem mais muita coisa que essa véia quêra da vida de módii que podi fica com ele se quisé e pudé pagá.
Levantei espantado, corri de volta para a pousada e fiquei rezando, sem conseguir dormir, durante toda à noite, até o dia seguinte. Pela manhã, finalmente consertaram o caminhão e pudemos seguir viagem.  Quando contei aos outros homens quase morreram de rir, dizendo que provavelmente o bicho seria um filhote de macaco ou mesmo fruto da minha imaginação, mas não me dei por satisfeito! Eu sabia o que tinha visto, o rosto do pequeno era demasiadamente humano para ser confundido com o de um macaco. Não nego que alguns pensamentos orbitaram minha mente: quanto será que custa; seria apenas uma velha, desesperada, desocupada e charlatona?
O assunto me assombrou por muitos, muitos anos, mas não posso dizer que me fez apenas mal: graças à visão tenebrosa que tive do diabinho na garrafa, consequentemente tornei-me uma pessoa mais crente em Deus e no Diabo. Fiz mais caridade, frequentei mais a igreja, me tornei um cristão devoto.
Há pouco tempo, me aposentei e fiquei decidido a tirar a limpo essa história que nunca me saiu da cabeça decidi voltar à cidadezinha para tentar descobrir do que se tratava o tal monstro, sanar a dúvida que me assola há tantos anos: afinal, o que foi que eu vi aquele dia? Dei uma desculpa à esposa e as filhas, disse que precisava tirar umas férias sozinho, peguei um avião para João Pessoa e de lá um ônibus rumo à essa vila, que atualmente nem se chamava mais Córrego de Areia.
Chegando, notei de imediato que a cidade havia crescido bastante, estava mais urbanizada, com mais casas, carros, motos, mas ainda assim uma cidade do interior. A feira continuava lá, no mesmo lugar e mesmo andando por ela, durante horas não consegui encontrar diabinhos em garrafas e nem a velha da ocasião; o que eu já esperava, afinal de contas, em 1973 ela já era bem velha, com certeza já havia de ter morrido.
Um pouco frustrado, mas ainda disposto a tirar a história a limpo, parei em uma outra barraca esotérica - que não tinha Familiás, no caso; perguntei ao vendedor sobre a velha e a lenda do diabo engarrafado. O homem de meia idade disse que nunca havia visto tal velha com as características descritas, que aquela era uma feira itinerante e os barraqueiros iam e vinham, ficavam e desficavam da mesma forma  que o sol se põe e nasce todos os dias, frustrando o resto de minhas esperanças; quanto ao diabinho da garrafa: disse que já havia ouvido falar de algumas histórias, que era comum os fazendeiros ricos da região terem um para chamar de seu, que traziam fortuna e tudo mais, porém sugeriu que eu procurasse um feiticeiro da cidade, ele provavelmente poderia dar  informações mais profundas sobre o tema. Agradeci, anotei o endereço que o sujeito indicou e fui guiado por ele, acabando por chegar em uma pequena chácara, uma espécie de tapera à beira da estrada com galinhas soltas no terreiro da frente e onde uma placa de papelão escrita à mão dizia:

" PAI BENTO
LÊ PASSADO PRESENTE E FUTURO;
BÚZIOS, TARÔ E CARTAS
TRATA DE ASSUNTOS ESPIRITUAIS
AMARRAÇÕES
FAZ E DESFAZ MALDIÇÃO
TRABALHO PRO BEM E PRO MAL "
 
Bati palmas e um senhorzinho desses da roça, bem velhinho e magrelo, até simpático eu diria, apareceu na porta. Em uma mão se apoiava em uma bengala, com a outra me fez um gesto convidando a entrar.
O interior da choupana era bem simples, paredes de barro continham quadros antigos com fotos enegrecidas de possíveis parentes do Pai Bento, junto a imagens de santos católicos. Me sentei em um sofá carcomido e o velho voltou com uma bandeja de madeira, sob a qual se encontravam duas canecas de metal e um bule fumegante, do qual saia um agradável cheiro de café recém passado. Me servi agradecido e comecei a contar minha história, de que já havia estado ali há décadas atrás, o que vi, a história que não saía de minha cabeça, por fim, falei da minha enorme curiosidade e que ansiava muito sobre o que ele diria sobre o causo.
A partir de agora, irei narrar palavras de Pai Bento - da maneira da qual lembro. Recordo com exatidão o sentido da mensagem, mas talvez minha mente cansada não lembre fielmente das palavras, ademais, é assim que foi, para mim; não se preocupe, o sentido está intacto. Enfim, começou a dizer o velho:
-Hum, hum…  Então, tu quer um diabin da garrafa, é seu cabra? Não é fácil fazer um e muito menos barato. Não digo barato no din din; pila não vai te custar algum, mas em troca- deu uma gargalhada maliciosa, em troca tua alma vai direto para o colo do capeta quando bater as botas. Tudo tem seu preço, homi, o diabinho nesta vida, te dará tudo o que quiser: dinheiro, mulheres, uns lote, fama, quase tudo de material e imaterial que um homi quer em vida terrena. Cedo ou tarde, ele vai lhe cobrar! Essa cobrança, não quer dizer que ele irá querer a sua alma; talvez ele lhe leve a vida dum fío, duma esposa, talvez mande que ocê faça algo por ele, depende bastante do humor do cramulhão quando ocê fez o pacto. Sim, um pacto! Criar um diabin da garrafa não é nada mais nada menos que fazer um pacto com o próprio Satanás. Não se engane pensando que sairá bem dessa história, independente se for uma tarefa simples ou não, não vão lhe deixar entrar no céu depois que suncê faz um pacto satânico - e mais uma vez, gargalhou maliciosamente, olhando no fundo dos meus olhos, como se olhasse e lesse minha mente, captasse minhas intenções e decifrasse todos os meus temores.
-O diacho do bicho engarrafado tem muitos nomes: Familiá, diabin da garrafa, Cramulhão, pé preto, mão peluda, familiar; muitos nomes para falar duma coisa só: um diabin pessoal, que você alimenta com energia mística, positiva ou negativa, vai fazer tudo que seu mestre quiser. Até pouco tempo, era normal achar gente vendendo esses diabinhos engarrafados em feiras aqui do Nordeste, mas hoje em dia está mais difícil se deparar com esse tipo de coisa; como disse, esses bichin se alimentam de energia mágica e a vinda das pessoa pra cidade e essas coisa moderna, têm ficado cada vez mais difícil fazer e manter vivo um demonin desses. Modernidade atrapalha as energias mágicas de se manifestarem, hoje em dia é bem mais difícil se deparar com situações como a que se deparou quando era mais moço.  No final das contas, o que mantém essa criaturinha viva é a crença, tudo que nós crê, nós alimenta. Mas não é impossível de ainda se encontrar! De vez em quando ainda topo com um ou outro querendo vender um Familiá engarrafado, para o desespero dos padres da região. Eu dou é risada. As pessoas têm o direito de fazer o que quiserem com a vida delas; o tal do livre arbítrio também é deixar os outros escolherem o seu destino de suas vidas póstumas, mas admito que sempre que lembro dos nomes desses cabeça de vento, faço uma oração.
Fiquei deveras assustado, finalmente o assunto que me perseguiu por boa parte da vida estava ficando claro para mim. De todas as teorias que pensei nesses anos, nenhuma se compara com o que acabei de ouvir, tenho absoluta certeza que ainda pensarei muito nisso mas, com uma bagagem de informação - que talvez me assuste mais que a desinformação..
O senhor continuou.
-Vô ti conta, não é fácil fazer um Familiá e qualquer errin bobo bota tudo a perder. Porém num é impossível... O que mais posso lhe dizer... é um feitiço bem antigo, talvez mais antigo que a própria Igreja! São Cipriano já o descrevia um eito de tempo atrás em seu Livro da Capa Preta, há relatos disso pelos quatro cantos do mundo e falando nisso, cabra, tu nem devia ter vindo até o interior de João Pessoa procurá essa informação, vejo que tu é bem de vida, lá nas tuas bandas devia ter alguma bruxa véia, meio trambiquêra que soubesse de algo; mas já que suncê tá aqui, não o farei perder a viagem. Tu deve estar querendo saber como faz o diabinho engarrafado, então vamo lá que eu vou lhe explicar.
Na verdade, eu nem pensava nisso, achava que provavelmente era um ser que habitava o mundo concomitante conosco. Seguia a lógica de que se "conhecemos" os oceanos, e ainda não conhecemos nem 10%, quem garante que a existência de sereias é irreal?
-Tudo começa com a escolha do lugar que será feito o feitiço: é comum das pessoas fazerem no terreiro de casa, no próprio galinheiro ou pasto; uns dizem que o certo é fazer em uma encruzilhada, terreiro de candomblé ou terrenos da Igreja, Eu como feiticeiro véi que sou, sei que isso não é tão necessário; ajudaria a fazer dar certo, é um bicho que se alimenta de energia mágica, encruzilhadas, terreiros e áreas da Igreja são lugares muito carregados de energia, seja ela positiva ou negativa. Porém, como encruzilhadas são lugares que têm muita circulação de pessoas - logo, curiosos e nem todo mundo tem à disposição uma Igreja ou terreiro, o mais comum é fazer no galinheiro de casa mesmo. O mais importante é ser um lugar que não tenha ninguém para fuçar e estragar tudo! É um processo muito delicado, demora para ficar pronto e exige um lugar tranquilo e sem muita gente.
A curiosidade ficou mais forte "e se, e se, e se" era só o que pensava; embora não tivesse coragem de fazer esse ritual, imaginava "e se" fizesse. Com certeza não seria em minha casa! Primeiro porque minha família não entenderia e segundo porque está longe de ser sossegada.
-Escolhido o lugar, chega a hora de escolher o período, os dias em que suncê fará o ritual. É bom que seja feito no início da quaresma, é uma época muito sagrada para os religiosos, de resguardo e oração, a energia do mal é alta e o Diabo adora que profanações como essas sejam feitas durante períodos santos como este; como Jesus passou quarenta dias no deserto, os bons espíritos se retiram para se prepararem para o grande marco da passagem de Cristo para a vida eterna. É comum também que membros da Igreja e do terreiro parem de comer carne, beber, ir à festas, praticar atos libidinosos para evitar serem afetados pelo coiso ruim. Não é proibido que seja feito em outros períodos, também pode funcionar, mas guarde isso: é menos provável que dê certo.
Lembrei de algumas pessoas que conheci na vida, comecei a ligar alguns pontos, como nunca pensei nisso antes? O carnaval; o jejum dos muçulmanos…
-Tendo esses preparativos feitos, separe uma galinha e galo pretos e bote eles separados das outras galinhas dentro do galinheiro fechado. Traga também um bode preto, vivo, e uma vela preta de 7 dias lá para dentro que está na hora de fazer o pacto. Acenda a vela em um local alto, com parador de vento, esse é o momento em que, de fato, venderá sua alma para O coisa ruim. Com uma faca virgem faça um corte em seu dedo indicador e em voz alta, em claro e bom tom, sem espaço para entrelinhas ou incertezas diga que está ali para oferecer sua alma a Lúcifer, em troca de todo o dinheiro e bens materiais que puder ter nessa vida e que caso um dia isso lhe falte o pacto será desfeito. Dito isso, corte a garganta do bode e espalhe seu sangue pelo galinheiro.   Com uma mistura do sangue do bode e o seu que sai do seu dedo desenhe uma cruz invertida na parede do galinheiro bem embaixo da vela preta. Esse é o momento em que, se o capeta lhe atendeu, você deverá sentir um troço estranho... É bem peculiar de cada um, uns sentem um pedaço da alma deixar o corpo, outros sentem um vazio que só vivendo pra explicar. O importante é saber que suncê deverá o local e não voltar a entrar ali enquanto não se completarem 7 dias! Lhe sugiro que vá direto para a cama pois vai arder em febre por uns tempos - o velho deu uma risada maligna, fiquei paralisado.

-No final dos 7 dias, quando a vela se apagar, volte ao galinheiro. É o momento de procurar o ovo do cramulhão, um ovo de galinha que estará fecundado pelo próprio dêmo! Cuide ao entrar, veja bem onde pisa, pois o ovo é pequeno, bem menor que um ovo normal de galinha, mas com a mesma aparência. Há quem diga que esse é um ovo botado por um galo e eu digo: besteira, cabra! Isso não existe, é impossível um galo botar ovo e esta é uma informação muito da mentirosa que vem dos anos de lenda passada no boca a boca. Ao achar, notará que apesar de menor é muito mais pesado que um ovo caipira normal, sua consistência interna aparenta ser mais viscosa: a gema e a clara não se mexerão com tanta malemolência quanto os de um ovo caipira normal.
A partir daqui, fiquei com medo do meu "e se, e se, e se" se tornar realidade. Seria incabível eu ter dedicado anos de fé e altruísmo fugindo desse bicho fisicamente, mentalmente e espiritualmente para depois de eu velho, barbudo, aposentado ficar tentado a corromper minha alma.
-Pegue o ovo com cuidado, leve de preferência, a uma encruzilhada, donde tenha um monte fresco e quente de estrume; pode ser estrume de boi ou cavalo, mas prefira os dos cavalos, são animais mais mágicos que os bois. Aí me pergunta: por que o estrume? Simples meu cabra, estrume é um dos elementos com maior quantidade de energia mágica vital, ele é o resultado de toda a comida que o bicho come, passa por todo o seu corpo e é resultado de um processo que o mantém vivo. Tem muita energia acumulada e pela décima vez: esses diabin se alimentam de energia. Há versões do ritual que dizem que se deve botar o ovo debaixo do subaco esquerdo, faz sentido, diz os dotô que na asa esquerda passam uns vasos que vem direto do coração, poucas coisas têm tanta energia mágica quanto'um coração humano batendo. Porém não é conveniente, imagina como é ruim ter um ovo debaixo do braço por 40 dias;  ele se quebraria mais cedo ou mais tarde e levaria todo o processo por água abaixo! Outras versões dizem que se deve matar um gato preto, enterrar seus dois olhos ali nas fezes, junto do ovo; outra coisa que também faz sentido, gatos são os bichins espirituais e matar um para colocar seus olhos como “comida” de dêmo, suncê deve imaginar o tanto de energia que está acumulada ali.
Acho que nunca tinha ouvido tantas teorias sobre fezes na vida, não que eu lembre muito das aulas de biologia que frequentei durante o colegial. Sentia um fogo dentro de mim, como se estivesse adormecido há muito tempo e tivesse despertado agora.
-Enfim, bote o ovo no estrume quente e o deixe ali incubando por 30 à 40 dias. É interessante que ocê busque uma encruzilhada que num passe ninguém! Se algum curioso remexer a bosta em algum momento pode quebrar o ovo e aí bau bau, tem que começar tudo de novo. No final de 30 dias volte diariamente e com todo o cuidado mexa no estrume para ver se o diabin já nasceu. Quando ele nascer tu irá notar o ovo quebrado e no meio do estrume, o encontrará.
Daí eu lhe pergunto: qual será o nível de desespero pra fazer um indivíduo fazer revirar dejetos a fim de ganhar "poder" em vida?
-No começo ele parecerá mais com um lagartin de parede do que com um diabin. Será uma espécie de lagartixa preta, pegajosa, pequeninha, que se enrolará inteira em seu dedo quando tocada. Pegue, leve para casa e coloque-o dentro de uma garrafa vazia com arrolha e tudo. A partir daí, dê comida todos os sábados, furando teu dedo com um alfinete virgem e pingando duas gotas dentro da garrafa. Deixe de preferência em um lugar energizado da casa, que ninguém mexa; um altar véi que nem eu, de orações pessoal ou capela são melhores. Alguns pedem pra benzerem a garrafa, evitando qualquer tripulia  do dêmo, mas isso é bobagem, não muda nada.

-Com o tempo, tu irá notar que seu diabin irá cada vez mais parecer com um humano pequenuxo, cada vez menos parecido com um lagarto. Aos poucos ele passará a se mover com duas patas, o rabo ficará maió com uma ponta em forma de flecha, mãos e pés vão parecer de gente e chifres brotarão da cabeça. O coiso que suncê viu quando era moço provavelmente estava nesse estágio.
O feiticeiro já havia mudado seu olhar e seu tratar; antes mantinha uma certa distância, agora já chegava perto de mim e dizia num tom de voz que era quase um sussurro, como se estivesse falando algo proibido..
-Um dia pegará a garrafa e para sua surpresa, só vai ter pequenos pedaços de carne preta se desmanchando, mas não fique afolosado! É sinal que seu dêmo virou adulto e poderá atender todos os pedidos. Acontece que adulto ele toma o poder de ficar invisível, mas ele ainda está ali dentro, pode acreditar. Você ainda poderá o ver, é verdade. Às vezes, olhando de canto de olho, vai ver uma forma diabólica em miniatura dentro da garrafa, mas se olhar de novo, não verá mais nada e ficará em dúvida se realmente viu alguma coisa ou não; às vezes notará uma poeira girando dentro da garrafa, que logo se acalma; às vezes conseguirá ver sua sombra se botar a garrafa perto de uma fonte de luz,  sem nenhum corpo lá dentro que faça sombra. É importante dizer que a partir desse ponto não se deve nunca mais voltar a abrir a garrafa! Não é mais necessário alimentar e caso ignore e abra a garrafa com o coiso adulto, pode crê que sua vida se transformará num inferno na terra.
No fundo eu sabia que não era só maravilhas, mas essas últimas informações me deixaram desanimado, eu juro que imaginava que seria uma criatura digamos que mais "presente". E estou contando isso porque provavelmente, você imaginou a mesma coisa que eu.
-Se tu seguiu os passos direitinho e conseguiu chegar a esse ponto está pronto para pedir o que quiser. O diabin te atenderá em tudo. Também é possível fazer qualquer pergunta sobre o passado, presente ou futuro e ele lhe responderá em sonho. Terá uma vida de rei, regada por todos os luxos que puder imaginar. Lembre-se: sua alma estará condenada a sofrer por toda a eternidade nas mãos do satanás, e aí lhe pergunto, vale a pena?
Agradeci Pai Bento, o paguei o que devia pela consulta e segui meu rumo. Por sorte, nunca tentei fazer o ritual e nem recomendo que façam; felizmente, minha razão e temor em Deus foram mais fortes que a minha curiosidade, naturalmente humana, no desconhecido. Pude ao menos ter uma noção do que encontrei aquele dia em minha juventude. Hoje sou um homem mais temente a Deus, não desejo nada de ninguém e sigo minha vida normalmente. Ainda há algo que ainda frequentemente me tira o sono: se esse diabinho da garrafa existe, penso nas outras possibilidades de existências. Passei a refletir e temer mais o desconhecido. Esse indecifrável mundo deve abrigar criaturas que não ousamos imaginar, todavia, garanto que todo mundo tem uma história semelhante a minha, mas assim como eu, guardam à sete chaves, porque a grande maioria dos habitantes, humanos, desse planeta, não acreditam no sobrenatural por não ser algo "racional". De fato racional não é, contudo é inegável e inquestionável que o sobrenatural existe e convivemos com ele, quer você acredite ou não.


Obs: Este conto foi editado, corrigido e melhorado pela sensacional Júlia Lunardi, valeu demais garota!

The Boys (2019) - Análise

  Primeiramente, gostaria de me desculpar pelo longo hiatus do blog... A faculdade começou a apertar, uns projetos da vida pessoal também e acabei me esquecendo um pouco dele. Tá bom, tá bom, sei que isso nem importa... Acho que ninguém lê mesmo! 😒 Mas de todo jeito, pretendo voltar a escrever mais a partir de hoje; inclusive já tenho uns 5 rascunhos de artigos pela metade apenas esperando para que eu trabalhe neles.

Enfim...

  Resolvi aparecer hoje para recomendar aos leitores uma série fantástica, magnífica, topzeira, incrível que assisti esses dias: The Boys. Rasgo tantos elogios pois, apesar de gostar bastante, não me considero um grande fã de seriados. Acho que me falta paciência, persistência, sei lá... Sempre acabo os largando pela metade e nunca mais mexendo. Breaking Bad por exemplo (que também é outra série ò 👌 melzinho na chupeta) eu amei de paixão! Mas fui incapaz de terminá-la, acabei largando no meio da última temporada... TEM LÓGICA UMA PORRA DESSAS?? NO MEIO DA FUCKING ÚLTIMA TEMPORADA! Preciso tomar vergonha na cara e um dia terminar de assistir. Mas voltando ao assunto: não me considero um grande fã de séries, de forma que quando recomendo alguma para alguém pode saber que é porque realmente mexeu comigo de alguma forma. The Boys mexeu. Farei aqui uma análise opinativa sobre esta (que até o atual momento só tem a primeira temporada) e tentarei a deixar o mais livre de spoilers possível... Mas caso você seja alguém muitississíssimo chato com spoilers, recomendo que não leia pois pode ser que eu solte algum sem querer. Vamos lá!


Uma história em quadrinhos verossímil 


  Certamente você já deve ter se pego imaginando como seria o mundo se existissem Super-Heróis na vida real. Bem, The Boys é basicamente sobre isso: um mundo em que tais vigilantes não só existem e combatem o crime como também são super celebridades mundialmente conhecidas... Eeeerr, deixem eu me corrigir um pouco: alguns são celebridades, a grande maioria dos supers apenas protegem cidades pequenas em busca de fama, reconhecimento e uma vaga na Vought International (logo falarei mais sobre isso).
  Parece incrível, não é mesmo?! Super-heróis! Seres humanos perfeitos, belos e morais, prontos para defender os cidadãos e o mundo de maneira segura, ética, justa e absolutamente filantrópica!

Só que não...

  The Boys foca em mostrar que os supers são apenas humanos super-poderosos, ou seja: humanos. Assim como eu e você eles sentem raiva, amor, medo; tem fraquezas, emoções, desejos e no fim das contas não são tão bonzinhos quanto os desenhos, filmes e quadrinhos costumam mostrar... Acontece que apesar de serem seres humanos e ter sentimentos, ainda são super-poderosos e como bem sabemos: o poder corrompe. Corrompe pra caralho eu diria... A questão é a seguinte: Supers nesse mundo são tão poderosos e tão bem vistos pela sociedade que recebem de certa forma carta-branca para causar todo o caos e destruição que quiserem enquanto combatem o crime e ganham montanhas de dinheiro em contratos de publicidade. Caso matem alguém durante suas lutas contra a criminalidade "tudo bem", são fatalidades que ocorrem não é mesmo? Coisas da vida.

Espera aí!! Quer dizer que os super-heróis matam civis inocentes na cara dura e fica por isso mesmo???

  Sim querido, inclusive isso não é de hoje: pare pra pensar em como fica Metropolis depois de uma luta do Super Homem com o Apocalypse... Quase toda destruída! Quantos civis inocentes não morreram ali durante o combate?! Enfim, não é diferente em The Boys. Porém, há ainda mais um detalhe sórdido na série: assim como existem pessoas boas, pessoas ruins e pessoas ruins que se fingem de pessoas boas, existem heróis que se encaixam nesses três perfis... Claro! Na frente das câmeras todos mantém a postura, é interessante para eles que a sociedade os veja como perfeitos, éticos e bons, mas quando as luzes se apagam... Bem, nem todos são tão bonzinhos assim. Lembra que eu falei que as vezes eles matam civis sem querer durante sua luta contra o crime? Pois é, nem sempre é sem querer e nem sempre é lutando contra o crime... As vezes acontece de não conseguirem controlar seus poderes e causarem acidentes, as vezes eles são omissos, as vezes deixam de salvar cidadãos simplesmente porque nessa determinada situação salvá-los não seria bom para sua imagem pública... e as vezes estão simplesmente entediados e querem descontar sua raiva e frustração em alguém. E o que é que acontece? Ninguém presta queixa nem nada? Não. Primeiro porque, como eu já disse, a opinião pública é totalmente favorável a eles e ademais, mesmo que prestassem quem iria ter condições de fazer alguma coisa?! São heróis, deuses, são super-poderosos e só não destroem a humanidade simplesmente porque não estão afim.
  Vamos pegar como exemplo o Capitão Pátria. Capitão Pátria é um personagem baseado quase que inteiramente no Super Homem: é super forte, super veloz, voa, solta raio laser pelos olhos, lidera Os Sete, tem seu poder baseado no sol e é, basicamente, indestrutível. É o cara, o maior herói de todos! Ninguém tem poder suficiente para derrotá-lo: nenhum outro herói, nenhum governo, nenhum exército, nenhuma arma nuclear, ninguém mesmo!

Agora chega aqui comigo no canto, deixa eu te perguntar uma coisa bem baixinho: quem é que você acha que é louco de peitar esse cara? Eu mesmo respondo: ninguém. Se o maluco quisesse poderia destruir o mundo inteiro sozinho, simplesmente não dá para contrariá-lo. Capitão Pátria faz o que quer, a hora que quer e por simples dois motivos:
1) Porque ele pode
2) Porque ninguém vai impedi-lo

Conseguiu perceber o quão foda é a situação? A nós, meros mortais, resta rezar para que o que ele quer fazer esteja em sintonia com nossos interesses e integridade física.

Aaaa, mas ele é o Super Homem Capitão Pátria, é amado por todos, é um cara bonzinho! Pode até matar alguém de tabela vez ou outra mas só faz o bem!!

  Então, não quero dar spoilers, mas digamos que ele não é um cara tão gente fina quanto o Clark Kent... Ainda assim, é amado por todos e a população em geral nem desconfia de sua verdadeira índole.
  Mas Capitão Pátria não é o único herói e a história não é nem mesmo focada inteiramente nele. Na verdade a trama se divide em dois núcleos principais, de forma que acompanhamos a vida de Luz Estrela e Hughie. Falando um pouco dos dois, Hughie é um jovem adulto normal.. Normal até demais eu diria, sua vida chega a ser um tanto quanto entediante: tem um emprego chato e mal remunerado numa loja de equipamentos eletrônicos, uma namorada meia boca e mora com o pai, que o trata como criança. Em certo ponto da história uma tragédia acontece e isso motiva Hughie a se juntar com mais uns malucos que, assim como ele, querem se vingar dos super-heróis devido à desgraça que já trouxeram a sua vida (daí o nome The Boys). Já Luz Estrela é o codinome de Annie January, uma super-heroína que tem o poder de controlar a luz e vive com a mãe em uma cidade do interior, ouvindo rádios-patrulha policiais e combatendo pequenos crimes. Seu objetivo ao tomar conta da cidade é altruísta, mas ao mesmo tempo funciona como uma jogada de marketing para atrair a atenção da Vought e dos Sete. Em dado momento a história dos dois se cruza e se desenrola ao longo da trama.

Tá man, mas o que é a Vought? O que são Os Sete?

  Vought International é uma grande empresa que gerencia super-heróis. Ela administra, cuida da parte burocrática, faz contratos de marketing, rastreia crimes por meio de uma equipe criminalista e faz acordos milionários com governos e prefeituras para oferecer os serviços de segurança privada dos heróis. Os Sete por sua vez são uma espécie de "Liga da Justiça" da Vought, um grupo de sete heróis que na teoria protegem a Terra, mas que na prática mais fazem propagandas e multiplicam os lucros da empresa do que combatem o mal.

E esses 7 heróis são os mais fortes do mundo certo?

  Eeerr, mais ou menos... Claro, há o Capitão Pátria que é o mais poderoso da Terra, o Trem-Bala que é o mais rápido, mas ser o melhor não é um requisito absolutamente necessário para entrar para Os Sete e sim dar dinheiro para a Vought. Os Sete são nada mais que uma jogada publicitária, uma maneira de vender produtos! Os próprios heróis do grupo dizem em diálogos que faz muito tempo que não combatem um crime de verdade. Vale a pena falar dessa empresa e desse grupo pois é aí que se encontra a genialidade da série! The Boys é uma espécie de Watchman do século 21, focado em mostrar não apenas a humanidade que existe nos heróis, mas exibir como o sistema capitalista consegue capitalizar e fazer dinheiro com absolutamente qualquer coisa! O mais assustador é que é grandemente verossímil, não pelos heróis (claro) mas por ser possível notar com clareza as várias críticas cabulosas ao sistema, sobre como as pessoas são tratadas como produto, como os seres humanos são absolutamente descartáveis no mundo em que vivemos e como é grande a hipocrisia e a falsidade nos dias de hoje, em que mais vale parecer ser algo por trás de uma tela do que realmente ser.
  Outro ponto importante de se considerar é o fato da série ser em si bem pesada, tanto no sentido de drogas e sexo quanto de gore. Lembra daquela cena clássica em que o The Flash dá a volta ao mundo para dar um soco em um bandido que cai desmaiado? Pois é... Em The Boys, se um herói velocista se choca numa pessoa em plena velocidade do som digamos que ela explode em mil pedaços, literalmente. Super-Homem usava seus olhos de raio-laser em um inimigo e ele sofria apenas com dor e queimaduras? Em The Boys ele derrete o sujeito caso faça isso. É amigo, é tenso o negócio e esse é um dos motivos de eu amar esse show!
  Enfim, vale ainda acrescentar que se tratando de aspectos cinematográficos o seriado também brilha: a fotografia é ótima, a trama flui bem (sem aqueles núcleos chatos, que quase toda série tem) e os efeitos visuais são incríveis. Recomendo demais que assistam! Fazia muito, muito tempo que um programa não me prendia assim e o melhor é que dá pra maratonar tudo em uma sentada. Ótimo para quem tem pouco tempo sobrando.
  Atualmente, há apenas 1 temporada de 7 ou 8 episódios de 50 minutos cada e é possível assistir pela Amazon Prime Video, serviço similar à Netflix que me surpreendeu bastante pela qualidade (tanto do Streaming quanto pela quantidade de títulos bons que se encontram disponíveis). Li em uma notícia que diz que a 2ª temporada já está em produção... Para mim que não tenho super poderes não há muito o que se fazer a não ser esperar, bem ansioso.

                                           Esse cartaz resume bem o que a série propõe

Obs: Recentemente descobri que o seriado é baseado em uma HQ. Irei ler e em breve conto para vocês se curti!

sábado, 23 de março de 2019

Camel Blue

  Um quarto universitário em uma tarde nublada de sábado, dois jovens. Ele, sentado na cama, usando um shorts de motivos tropicais, terminava de bolar o terceiro fininho do dia. Ela, meio assentada e meio em pé na janela, apenas de calcinha vestia uma das camisas da Vans dele, que no momento mais parecia um vestidinho.. Secretamente, ele achava isso algo extremamente sensual.
  De cabelos curtos e olhar distante, ela pegou o maço de Camel Blue, tirou um cigarro e acendeu, seus olhos castanhos brilhando ante aquele meio sol de fim de tarde..Terminando de enrolar, ele reparou nos olhos dela, brilhantes, mágicos..

No som, Smashing Pumpkins, 1979... Se olharam. Demoradamente. Ela, que soltava fumaça pelo nariz, terminou o processo pela boca. Riram, cúmplices. 

"-Me dá uma bola desse careta.."
"-Não."
  Ele a puxa pelo braço carinhosamente, ela se desenrola rindo, simulando não querer e, como se fosse uma consequência natural, vai parar em seu colo. Ela coloca o cigarro na boca dele, que traga, mal termina e já recebe um beijo. Os lábios dela são molhados, doces.. um doce de menina mulher, ele não sabe explicar.

        Começam a rir, ela deita na cama colocando a mão na barriga e gargalhando; ele, com a mão em sua perna e, meio sem saber, sente um conforto tão bom em estar do lado daquela mina. Foram os becks de mais cedo? Talvez sim, talvez não mesmo... Mas sinceramente, isso importa?



 

quarta-feira, 14 de março de 2018

Hotline Miami - Análise

  Esses dias atrás estava eu de boas navegando na internet quando me veio a ideia de baixar um bom jogo indie. Geralmente tenho boas experiências sempre que essa ideia me vem a mente e inclusive foi assim que descobri vários games excelentes como Papers Please, This War of Mine, Undertale (puta que pariu, Undertale! Ainda preciso fazer um post sobre o quanto ele é bom) e o recente e hypado Cuphead  (e não hypado sem motivo! Pois também é do caralho). Enfim, estava eu procurando um bom game independente quando me surge Hotline Miami. Não sei se fui eu que achei ou se me apareceu aleatoriamente em alguma página ou vídeo da internet, a questão é que já tinha ouvido falarem bem dele e me pareceu uma boa baixá-lo. Meu irmão, o resultado não poderia ser melhor...

   Foi simplesmente um dos melhores games que já joguei nos últimos tempos!

  E repare que eu disse game e não apenas indie, ou seja: foi um dos melhores que joguei nos últimos tempos dentre todos os jogos por mim experimentados, sejam eles pequenos projetos ou franquias milionárias de nova geração que pipocam por aí o tempo todo. E o que faz dele tão bom? É o que vamos discutir abaixo.
  Antes de mais nada vamos aos conceitos gerais, recorrendo para isso à boa e velha Wikipedia:

Hotline Miami é um jogo eletrônico 2D de ação com visão de cima criado por Jonatan Söderström e Dennis Wedin. [...] Situado em Miami no ano de 1989, a trama do jogo consiste em dois protagonistas conhecidos como Jacket e Biker, os quais recebem telefonemas instruindo-os a cometer massacres contra a máfia russa local. O game mistura uma perspectiva de cima com situações stealth, violência extrema e narrativa surreal, juntamente com uma trilha sonora e visuais influenciadas pela cultura dos anos 1980. 



 Já deu para ter uma ideia do que se trata né? Um jogo de ação e matança extrema ao estilo Miami Vibes, mas engana-se quem pensa que fica apenas nisso. Vamos por partes:


História


  Hotline Miami é ambientado na Miami dos anos 80 (sim, naquele mesmo esquema de GTA Vice City). Seu personagem é o típico protagonista mudo e nem mesmo nome ele tem, sendo chamado apenas de Jacket devido à jaqueta Varsity, estilo colegial americano, que veste. Mais tarde o jogador também controlará Biker, o outro protagonista, mas não compensa falar muito dele até então.
  Não é possível se aprofundar muito na história sem soltar spoilers, mas o que é possível dizer é que inicialmente somos apresentados à Jacket que em uma sala estranha tem uma conversa com 3 sujeitos esquisitos vestidos com máscaras de animais.


  Cada um tem uma personalidade característica e trata Jacket de uma maneira diferente: a mulher com máscara de cavalo fala em um tom aconselhador e assistencial, o galo assume uma postura sarcasticamente acusatória e reminiscente, a coruja por sua vez não esconde sua desconfiança e ódio do protagonista.
  Ao invés de explicarem ao jogador o que está acontecendo eles apenas despertam ainda mais dúvidas e incertezas, de forma que você acaba se sentindo exatamente igual o protagonista: perdido, confuso, sem saber o que está fazendo ali, quem é você e quem são aquelas pessoas. Aliás, esse é um dos pontos mais altos do game: fazer você experimentar os mesmos sentimentos e emoções do protagonista.
  Enfim, após um breve e confuso diálogo, Richard (o Galo) faz quatro perguntas:
  1. Você gosta de machucar pessoas?
  2. Quem está deixando mensagens na sua secretária eletrônica?
  3. Onde você está agora?
  4. Por que estamos tendo essa conversa?
  Eles dirigem essas perguntas ao personagem, mas é válido afirmar que na verdade elas são feitas ao jogador pois, apesar de não parecer, essas quatro perguntinhas fundamentarão seu jogo, serão a base de suas dúvidas e busca por respostas. Quanto aos mascarados misteriosos só saberá quem são ao avançar no jogo... Ou talvez nem saiba com certeza pois a história do game não é linear e muito menos contada de mão beijada, inclusive boa parte do roteiro é interpretativo!
  Quando digo que a história não é dada de mão beijada falo sério, ela é contada através de parcas cutscenes que não explicam diretamente o que está acontecendo. No começo, você irá pensar que Jacket é apenas um assassino de aluguel que recebe os pedidos de assassinato via telefone, mas com o tempo perceberá que o buraco é um pouco mais embaixo que isso. Seu entendimento da história ocorrerá a partir de uma boa análise das cenas de diálogo, da leitura de fragmentos de jornais encontrados nos cenários e da observação de mudanças sutis no apartamento do personagem ao longo do game. Boa parte do que acontece também não é explicado, ficando a cargo da sua interpretação pessoal e de seu exercício imaginativo entender o que está acontecendo e/ou aconteceu. Também é possível tecer várias análises psicológicas e filosóficas das situações ocorridas in game, principalmente conforme o jogo avança e vamos presenciando a deterioração psíquica do personagem, que aos poucos vai passando a sofrer com alucinações e delírios, nos fazendo questionar se realmente confiamos no que está sendo mostrado pelo ponto de vista do protagonista.
  É uma trama simples, não muito clara, com vários clichês de filmes e séries dos anos 80 mas ao mesmo tempo original e incrivelmente envolvente! Você não tem vontade de parar de jogar enquanto não entende o que está se passando.


Jogabilidade


  A "rotina" do jogo é bem direta: Jacket aparece em sua casa e ao andar um pouco por ela (não há muita interação com o cenário nessa parte) o jogador perceberá que há uma mensagem em sua secretária eletrônica. Ao abri-la, recebe uma ligação de algum desconhecido que requisita um "serviço"para o personagem fazer e um endereço. Na verdade, vou colocar aqui abaixo um bom resumo do que é quase que todo o gameplay do jogo que pode ser sintetizado assim:
  • Você aparece em casa
  • Recebe uma mensagem na secretária eletrônica pedindo para fazer um serviço (Sabemos que o serviço é matar pessoas, mas geralmente a mensagem é passada em código, com a pessoa que gravou o recado dizendo, por exemplo, "preciso de uma babá para hoje a noite, estou tendo muito problema com crianças mal criadas. O endereço é..." ou "ei cara, o garçom principal faltou hoje no restaurante, precisamos de você aqui. O endereço caso não se lembre é...". No fim da mensagem o interlocutor sempre diz: seja discreto.)
  • Sai de casa e pega o carro
  • Aparece no endereço
  • Mata todos que estiverem no local
  • Volta para o carro
  • Desce em algum lugar aleatório -como boates, bar, pizzaria, locadora, loja de conveniência- onde conversa um pouco com um personagem que o trata como um velho amigo e parece saber o que está rolando.
  • Volta para casa e o ciclo recomeça
  Vale observar que ao fim de cada capítulo lhe é atribuída uma nota, uma média de seu rendimento que vai de A+ a F. Para pontuar bem é preciso ser liso, realizar combos, terminar as fases rápido e realizar ações como execuções, nocautes, se expor ao perigo.. Entre várias aspas, quanto mais "criativamente violento" você for melhor.
  Enfim, o gameplay mesmo se passa nos endereços em que você deve matar todos, promovendo um verdadeiro massacre. WSAD controlam o personagem, o botão direito pega armas do chão e as arremessa quando estão sendo seguradas, botão do scroll trava a mira, botão esquerdo bate/atira e a barra de espaço finaliza os inimigos quando estão no chão ou os pega como escudo humano caso estejam em pé. Simples e objetivo.
  E meus amigos, se me permitem dizer: que jogabilidade é essa! Fluida, dinâmica, perfeita! Quando você pega o jogo pela primeira vez pode até estranhar e achar difícil, 10 minutos depois os controles passam a ser uma verdadeira extensão de seus pensamentos. É muito fácil e divertido se mover entre os cômodos, pegar armas no chão, arremessa-las em seus inimigos e acabar com eles, mas isso não quer dizer que o jogo seja fácil, pelo contrário: É DIFÍCIL PRA CARALHO! E tal fato ocorre pois além de estar sempre em franca desvantagem você morre com apenas 1 hit (dois se tiver uma máscara especial para isso, mas já já falo desse fator de gameplay). Me arrisco a dizer que em cada fase -quando jogada pela primeira vez- você morre (no mínimo) umas 50 vezes antes de conseguir passar. Os inimigos são espertos, mais rápidos que você, te ouvem e te veem facilmente (principalmente se usar armas de fogo), estão distribuídos em grande quantidade e basta uma encostada pra você ir pro saco. Dá raiva e é frustrante... Mas ao mesmo tempo não é! Uma vez que você revive quase que instantaneamente, sendo levado de volta ao início da fase e sempre consegue levar alguns para o inferno junto com você. Tal fato gera uma sensação gratificante e uma determinação absurda no jogador, que sempre irá pensar "agora vai", "agora peguei o jeito", "só mais uma"...  É um esquema de tentativa e erro e você deve ser tático e bolar todo um plano para conseguir passar à próxima etapa, utilizando para isso tacos, barras de ferro, facas, pistolas, escopetas, fuzis de assalto e mais uma série de armas disponibilizadas que geram animações de morte diferentes e extremamente violentas.
  Embora exija raciocínio e tática, o jogo te incentiva a não se preocupar em morrer e ir pra cima mesmo, metendo o louco, mas no fim das contas quem define como uma fase será passada é você. Vício é pouco pra descrever o que esse game gera. 

                                   A extrema violência gráfica e o gore são elementos marcantes do game

  E pra não dizer que toda a jogabilidade é perfeita aí vai algo que me incomodou pra caralho: nem sempre que você bate ou atira nos inimigos eles morrem, mas as vezes caem no chão como se tivessem morrido e do nada levantam. Com isso, ao acertar um inimigo, você que já está distraído se preocupando com o próximo cômodo ou corredor nem percebe quando ele se levanta, pega uma arma no chão e acaba te surpreendendo com a morte, fazendo recomeçar tuuuudo de novo. Não é um bug, é um elemento do jogo mas puta que pariu, que saco! Com o tempo é fácil se acostumar a isso: dá pra perceber que os inimigos que caem e não morrem não geram uma poça de sangue no chão e seu corpo não fica estraçalhado/brutalizado igual os que morreram de verdade, o problema é que conforme o desenrolar do nível o chão fica completamente lotado de cadáveres, pedaços de inimigos e sangue, muito sangue, o que dificulta distinguir qualquer coisa.
  Outro negócio que dá muita raiva são os cachorros, C-A-R-A-L-H-O!! Esses filhos da puta são MUITO rápidos e em questão de segundos pulam no seu pescoço, matando instantaneamente. O pior é que esses dogs andam por toda a fase, na maioria das vezes sem destino certo ou em uma rota que passa por lugares que o jogo sabe que o jogador vai tender a ficar parado mais tempo, com certeza você morrerá várias vezes até decorar o caminho único/aleatório que cada um faz. Dá pra matá-los fácil travando a mira mas o foda é que meio segundo de porrada na hora errada já determina sua morte.
  Mudando de assunto, outro ponto que não poderia deixar de frisar e que tem grande impacto no gameplay é o uso das máscaras. Antes de um massacre Jacket sempre coloca uma máscara de animal (igual a dos três personagens da conversa no início, lembra?) e essa máscara será escolhida por você dentre as disponíveis. A questão é que cada uma te nutre com uma habilidade específica quando está sendo usada: algumas te fazem andar mais rápido, outras dão mais resistência, outras fazem aparecer mais armas, outras fazem socos matarem em 1 hit, etc, etc... Você começa apenas com a do galo (Richard) que não dá benefício nenhum e é ganha logo antes da primeira fase, quando o protagonista abre um pacote que está na porta de sua casa e dentro dele está a máscara e um papel com algumas instruções sobre o serviço do dia. Ao longo do jogo, de acordo com seu progresso e rendimento, várias outras vão sendo liberadas.


 E além de habilidades especiais as máscaras dão todo um ar psicodélico, psicótico e surreal ao game, contribuindo para o design único do jogo e à história. Quando veste uma máscara Jacket se despersonaliza, praticamente se torna outra pessoa.. Tanto que cada máscara tem um nome próprio ao invés de simplesmente o nome do animal que é representado. O galo, por exemplo, se chama Richard, o cavalo Don Juan, o porco Aubrey e por aí vai..


Trilha sonora


  Sem nenhuma dúvida o ponto em que o jogo mais brilha, mais se destaca e que faz ele deixar de ser um ótimo game para se tornar um game genial é a trilha sonora! Meu Deus, não tenho palavras para expressar o quão incrível ela é!! Basicamente as músicas se resumem a batidas eletrônicas psicodélicas misturadas aos Miami beats da década de 80 e a sons característicos de vídeo-games retrô. 
  Disso tudo o mais interessante é que elas se adaptam ao ambiente em que você se encontra, ao que está acontecendo e ao estado de espirito/emocional do personagem. Por exemplo: durante as chacinas batidas eletrônicas repetitivas, hipnóticas e energizantes tomam conta e o resultado é incrível: elas realmente te pilham! Te enchem de ódio e violência, você realmente esquece de tudo que está acontecendo a sua volta e passa a se focar 100% na morte dos inimigos, na brutalidade e no prazer de encher todo o cenário de sangue e tripas (veja um exemplo aqui). Tal fato acontece pois músicas despertam sentimentos e estados alterados de consciência e é por esse meio que Hotline Miami faz você sentir na pele o mesmo que sente o protagonista. Durante o gameplay as músicas te enchem de uma determinação doentia, de uma vontade inexplicável e incontrolável de ver sangue, sangue que você vai tirar dos oponentes. Por alguns minutos você praticamente se torna um psicopata igual Jacket e é aí que acontece uma coisa muito interessante: a fase chega ao final. Nesse final de fase (geralmente quando o jogador já está no último andar do prédio em que o nível se passa e todos estão mortos) você deve fazer o caminho inverso ao que realizou para chegar até ali e voltar à entrada, pegar o carro e ir embora. Nesses momentos não toca música nenhuma, apenas o silêncio. Você e o silêncio.. E é nesse silêncio que a genialidade do jogo se manifesta: é necessário caminhar de volta à entrada passando pelas salas e corredores que limpou.. Andando por cima de todos aqueles corpos e sangue de pessoas que você matou e nem sabe ao certo se eram inocentes ou não. Você já não está mais pilhado pela música eletrônica, não está mais se sentindo um maníaco sedento por sangue... O silêncio te desperta do transe e conforme você vai andando e vendo as atrocidades que cometeu passa a pensar "meu Deus, eu fiz isso... por que??", "eu sou um monstro?? Eu estava gostando de fazer isso!!" e é com esse sentimento que vale a pena relembrar a pergunta número 1 que Richard faz ao protagonista/jogador: Você gosta de machucar pessoas?   
  No outro dia, ao iniciar um novo capítulo e acordar em seu apartamento a música tocada é arrastada, pesada, confusa e nauseante, como se o personagem estivesse em uma verdadeira ressaca após ter assassinado brutalmente tanta gente (ouça ela aqui). E não é só o protagonista que se sente assim: ao som da música você, jogador, se sente mentalmente cansado, pesado, como se estivesse baqueado após o fim de um delírio.. PUTA QUE PARIU, ESSE JOGO É GENIAL!!!

  Acordar em casa no outro dia é sempre um desafio... Vale a pena reparar nos detalhes do apartamento (mobília, decoração, objetos..) que mudam de pouco em pouco conforme o game avança e dão boas pistas sobre o que está acontecendo na            história.



Gráficos


  Hotline Miami possui gráficos 2D em terceira pessoa com perspectiva aérea, ou seja: a "câmera" vê o personagem de cima (igual os primeiros GTA's da época do Play 1). Além disso o game vai na contramão dos jogos atuais e investe em gráficos retrô, pixelados, muito parecidos com os que já vimos no Super Nintendo ou no Nintendinho clássico. Tal escolha estética não significa de forma alguma que o jogo seja feio, pelo contrário! Há todo um capricho dos criadores em gerar ambientes, objetos e personagens únicos e belos. A visão aérea contribui também com a imaginação do jogador, que muitas se pega pensando "Como seria essa sala em visão 3D?". 
  Também é valido destacar a paleta de cores escolhida para o design do game: tudo é bem colorido e abusa de tons de vermelho, azul, verde, rosa e amarelo, lembrando todo aquele estilo que já vimos em obras como Miami Vice e GTA Vice City (que inclusive serviram de inspiração aos criadores do jogo).
  A ambientação também não fica para trás e pega carona nos estilos de arquitetura, arte e decoração de Miami dos anos 80, bastante conhecidos na cultura pop. Durante a jogatina passamos por diversos locais: metrôs, boates, apartamentos, edifícios comerciais, hospitais, etc.. e todos eles são muito bem construídos e intuitivos (apesar de que não é incomum ficar meio perdido ao acabar a fase e fazer o caminho de volta). 
  E por fim é absolutamente necessário escrever um parágrafo apenas para falar sobre a violência gráfica do game que é (no mínimo) intensa. Todas as mortes que você provoca geram uma quantidade absurda de sangue e por isso é extremamente comum o chão dos cenários se tornar um mar vermelho ao fim de cada fase ou capítulo. Os corpos dos inimigos mortos geralmente ficam destruídos e digo destruídos para não dizer estripados, decapitados, esquartejados, explodidos e estourados das mais diferentes maneiras possíveis. Cada arma utilizada gera uma animação de morte diferente e deixa o cadáver com uma aparência específica e sou capaz de dizer sinceramente: se você é uma pessoa mais sensível não é incomum se sentir incomodado com a extrema brutalidade que seu personagem assassina os inimigos. Finalizar um oponente no chão utilizando um taco de baseball ou uma barra de ferro é absurdamente gore e brutal, assim como escalpelar um inimigo que já foi pro saco mas ainda está se arrastando por aí... É possível perceber que nesse ponto Hotline Miami bebe, e muito, da fonte de Man Hunt (PS2) e não apenas na violência e nas execuções bestiais mas também na jogabilidade e em alguns elementos estéticos como a máscara de porco e os ambientes sujos, decadentes e claustrofóbicos. Mas apesar de tudo os gráficos pixelados amenizam um pouco a violência do game e o fato de quase todos os hostis serem iguais também, uma vez que como todo mundo é um careca de terno branco fica fácil despersonalizá-los e passar a os enxergar apenas como um inimigo a mais.
  Se você gosta de gore Hotline Miami é uma ótima pedida.


"Pergunta final: Por que estamos tendo essa conversa?" (Conclusões)


  Enfim, o que posso concluir é que HM é um jogo sensacional que me agradou em todos os sentidos. Não vou atribuir uma nota específica pois não defini nenhum parâmetro ao começar a escrever essa análise e portanto seria injusto. 
  Recomendado a vocês que joguem, maaas é preciso se atentar à realidade de que não aconselho o gameplay para pessoas sensíveis ou menores de idade pois de fato a violência é muito forte. Inclusive, por ser um game violento é possível abrir brechas para a discussão de se o jogo poderia incentivar pessoas a cometerem massacres ou assassinatos.. Acredito que não, o próprio game te leva à reflexão sobre se aquilo que o personagem está fazendo é certo e se você de fato é um monstro, nos provocando sentimentos de culpa e remorso: as emoções mais humanas que existem e parte de uma das principais reflexões que a obra trás. Acredito também que se alguém comete uma atrocidade e culpa um jogo o problema não é o jogo em si, e sim a pessoa, que certamente possui instabilidades e transtornos mentais sérios, precisando para isso de ajuda e apoio específico. Se não fosse o jogo a influenciar seria um filme, uma série, ou até mesmo uma conversa ou interpretação equivocada (se você tem esse tipo de pensamento procure ajuda, pelo seu bem e o de todos).
  Terminando a análise, Hotline está por cerca de R$16,90 na Steam. Vale a pena (apesar de que baixei a versão pirata) e no momento estou jogando o 2 (Wrong Number); que até o momento está bem legal, talvez eu faça uma análise depois de terminar. Espero que gostem! Fiquem com Deus e comente aqui embaixo o que achou 👇. Abraços!

sábado, 3 de março de 2018

De amor ninguém morre

  Terminar não é difícil. Aliás, pode até ser que seja, mas de forma geral tomar a atitude e romper uma relação geralmente é fácil. Normalmente, o namoro/noivado/casamento já não andava mais aquelas coisas, se encontrava desgastado, difícil, ruim para um ou ambos os lados.. Talvez o amor tenha acabado, talvez a paixão tenha acabado, o tesão, sei lá... A questão é que, a priori, separações muitas vezes são vistas como uma libertação, uma guinada na vida, e fica mais fácil ainda ao sair pra farrear, quando os amigos são abundantes e a bebida não é escassa. Você agora é solteiro, livre e seria ótimo se essa sensação durasse a vida toda... O problema é que não dura.
  Provavelmente em alguns dias, semanas ou meses você vai perceber que na verdade não é tão fácil assim quanto você pensou.. Assim como Judas em algum momento percebeu que não valeu a pena dedurar Jesus por 30 dinheiros uma hora você cai na real e isso não vai ser em um dia de festa: vai ser naquela quarta-feira foda, tediosa, no momento em que você deita a cabeça no travesseiro e percebe que não consegue mais sentir o perfume de quem um dia já esteve ali. Vai ser o dia em que você encontrar um fio de cabelo, um brinco esquecido, ouvir determinada música ou ver um post em rede social e por 0,5 segundo pensar em marcar a pessoa antes de lembrar que a relação de vocês não existe mais.. E quando isso acontecer meu amigo, você vai quebrar, cair em uma fossa, perder a vontade de encarar o mundo e vai pensar que nunca mais sairá dessa situação... E pra tentar sar isso da-lhe cerveja, da-lhe cigarros, da-lhe doses sem gelo e da-lhe lamentos emocionados e ébrios no ouvido de amigos que com o tempo vão ficar de saco cheio de ouvir você reclamar de cada lembrança, cada detalhe, cada momento que te fez lembrar disso ou daquilo. Vai parecer que é pra sempre, vai doer, vai arder, despedaçar, mas acredite: passa. Em determinado momento você cansa de sofrer e segue em frente com sua vida.
  O amor é foda, pode te destruir, te arrebentar, te estourar inteiro... Mas dele ninguém nunca morreu.

                                         

domingo, 13 de agosto de 2017

4º Reich - Conto

  Joel acorda com o rádio relógio tocando a fanfarra governamental. Pensou em desligá-lo, mas seria impossível: o rádio do governo não possuía botão liga/desliga, o máximo que poderia ser feito era abaixar o volume. Destruí-lo era uma opção, mas constituía violação grave da Lei alemã para países agregados e, apesar de estar na França, não desobedeceria uma ordem direta correndo o risco de ir parar em um campo de trabalhos forçados. O locutor iniciava as notícias, com um tom de voz incompativelmente alegre e bem humorado:
  "Hoje é 20 de Abril de 1979, um dia de extrema importância para o povo alemão e agregados! É o aniversário do Fuher, nosso senhor e soberano, que no alto de seus 90 anos goza da melhor das saúdes!"
  Não era verdade, sabia. Havia ouvido falar que Hitler definhava no Hospital da Chancellaria em Berlim, mantido por aparelhos enquanto definiam um novo líder. Falar sobre esses boatos era expressamente proibido. O rádio continuava falando sobre as qualidades do ditador e a parada militar que ocorreria mais tarde enquanto Joel vestia suas roupas e preparava uma xícara de café. Pela janela, o céu cinzento se misturava aos edifícios velhos e desgastados de Paris, a alta industrialização e fábricas implantadas ali há anos atrás haviam causado aquele cenário triste.. O locutor continua:
  "Hoje os Estados Unidos deram os primeiros passos da política de boas relações com a Alemanha. O comércio entre as nações se baseará na exportação de commodities e..." Chega de ouvir, estava atrasado. Pegou a malinha e desceu apressado as escadas do velho prédio.
  Na rua, a avenida principal da cidade exibia uma suástica nazista brilhosa em um imenso outdoor digital, suspenso no prédio da prefeitura. Joel já havia ouvido falar de um tempo onde nada daquilo existia, o país era livre e as pessoas podiam fazer o que quisessem, mas não havia conhecido outra realidade que não fosse aquela, havia nascido durante a ditadura.
  Chegou enfim à fila da ração diária, se desse sorte conseguiria uma banana além da lata de pasta nutritiva padrão. Em volta do povo que esperava, um soldado gritava "-Mantenham-se em fila! Furos na ordem e agressividade não serão toleradas! Mantenham suas identidades e cartão de alimentação em mãos!"
  Joel esperava, olhava para frente e ao mesmo tempo para o nada.. Foi quando uma borboleta chamou sua atenção, uma borboleta... Achava que era impossível encontrá-las nas cidades mas ela estava ali: bela, delicada e azul.. Maravilhosamente azul. Ele levantou o indicador, no qual ela pousou, e abriu um sorriso enorme, que duraria pelo resto de sua vida.


sábado, 12 de agosto de 2017

A chegada - Conto

  Era uma manhã friorenta de Setembro em Londres e enquanto Sr. Walker preparava seu café, olhava pela janela a quantidade de névoa que se acumulava nas ruas. "-Que umidade será essa? Mal dá pra ver a outra calçada..." Estranho. Ajeitou a gravata borboleta, o chapéu de coco, deu uma olhada rápida em seu relógio de corda (presente do vovô) que tic-taqueava furiosamente e saiu para trabalhar. (7:45)
  Poças de chuva se acumulavam pelo passeio, na noite anterior houvera chovido, mas não se importava com os respingos em seus sapatos de couro Italiano quando pisava nelas. Do outro lado da rua um garoto de suspensório e boina gritava: "-Extra, extra!! A Alemanha invade a Polônia! A guerra está declarada!" Walker dá uma moeda a ele e leva o jornal debaixo do braço. Aquela névoa era realmente muito estranha, mal se podia ver dois metros a sua frente, tudo se resumia à aquela cerração branca, etérea. A frente, dois carros bateram devido as más condições de visualização e enquanto os motoristas discutiam pensava no quanto automóveis eram cada vez mais comuns nas ruas, "Nada pode parar o progresso!" pensa. Parando para refletir aquela realmente era uma época incrível: carros, indústrias, aviões, eletricidade! O avanço tecnológico, a era das luzes, ninguém poderia parar o homem!! Sorri, apesar daquela neblina estar o deixando inexplicavelmente incomodado. (7:55)
  Foi quando estava a apenas algumas quadras de seu trabalho que começou o som. Alto, estridente: uma sirene saindo dos auto falantes da cidade. Ele pára, olha para os céus "Um bombardeio, só pode ser!" é o que pensa. Todas as outras pessoas também se encontravam paradas na rua, olhando para o céu tentando ver aviões ou bombas (atitude inútil, aquela névoa não mostraria nada). Seriam os alemães? A Inglaterra não estivera mantendo boas relações com eles nos últimos tempos, mas um ataque assim, do nada? Era o mais provável, apesar de improvável. (8:02)
  A sirene reverberava, altíssima, os pedestres apressavam o passo a procura de abrigo, a qualquer momento explosões poderiam acontecer e ficar na rua não seria uma boa ideia. Dando uma corridinha, está quase alcançando o prédio de seu trabalho (onde poderia se esconder) quando pára, congelado de medo: um rugido assustador, extremamente alto, capaz de abafar totalmente a sirene, vindo do mar, ecoa pelas ruas. Silêncio. Exceto pela sirene não se ouve um pio, todos estão perplexos olhando uns para os outros. O que seria aquilo? Não conhecia nenhum ser capaz de emitir tal som gutural. Lembrava uma baleia mas... uma baleia não conseguiria emitir um uivo tão alto. (8:05)
  Seja o que fosse estava no mar, na esquina dali havia uma rua que dava em uma ladeira para o porto, de onde poderia ter uma boa visão. Ele e todos os outros pedestres vão para lá e logo percebem que há algo estranho se movendo entre as águas.. Devido à neblina não é possível ver com clareza, é apenas uma sombra cinzenta, o problema é que essa sombra é grande, grande demais.. Colossal para falar a verdade, e estava se movendo. Seria um Zepelin? Não, um Zepelin era demasiado pequeno se comparado à sombra. Dois então? Não, mesmo dois pareceriam ter o tamanho de balões de festa perto daquilo. Walker não sabe bem o porquê mas se lembra do filme King Kong, no qual um gorila gigante vindo de um local longínquo invade uma cidade, aterrorizando seus moradores. O pior de se pensar nisso era saber que o King Kong pareceria um anão perto daquele vulto que se movia. (8:11)
  Aos poucos a névoa se dissipou e então o horror... A sombra colossal, antes indistinta, lentamente se definia e demonstrava ter forma humana, ou quase isso: possuia dois braços do tamanho de arranha-céus, pernas gigantescas, asas e o que parecia uma cabeça, de onde saiam terríveis partes em movimento. Inexplicável, aterrorador.  A sirene parecia acentuar sua loucura. (8:17)
  Pedestres corriam, gritavam, mas Walker não se movia. Um cheiro nauseante de fezes começou a sair de suas calças. A visão do ser era aterrorizante e enlouquecedora, mas ao mesmo tempo hipnótica. Sentia a sanidade escorrer de seu cérebro para sempre, pelo resto de sua curta vida a partir dali. O velho burocrata jamais gozaria novamente de lucidez. A criatura urrou novamente, destroyers no mar atiravam contra ela com suas armas anti-aéreas mas parecia ser em vão: nenhuma arma de fogo parecia ter poder de parar aquele monstro colossal, cósmico, destruidor... Nada poderia detê-lo, nada terreno, celestial ou infernal.. Ele veio do mar e levaria consigo toda a humanidade... Walker assistia o início do fim e sabia muito bem disso... Muito bem... Loucura... Morte...
  O velho burocrata sabia que sua mente nunca mais seria a mesma, mas quando viu os tentáculos qualquer senso de humanidade que lhe restara foi embora, para nunca mais voltar... (∞)

                         "Ph'nglui mglw'nafh Cthulhu R'lyeh wgah'naql fhtagn"



Obs: Este conto foi baseado no Mito de Cthulhu, de autoria de H.P. Lovecraft, um dos meus autores preferidos. Nem preciso dizer que recomendo pra caralho a leitura né?